Uma pergunta que abre portas: questão sobre autismo no Censo 2022 possibilita avanços para a comunidade TEA

Editoria: Censo 2022 | Da Redação

27/02/2023 15h28 | Atualizado em 27/02/2023 16h40

“Já foi diagnosticado(a) com autismo por algum profissional de saúde?” Uma questão simples e objetiva representa o primeiro passo dado pelo Censo Demográfico para a identificação do Transtorno do Espectro Autista (TEA) a nível nacional. A inclusão do tema na edição de 2022 do Censo foi determinada pela Lei nº 13.861 de 2019, que é fruto de reivindicação e articulação da própria comunidade autista brasileira.

A pergunta sobre autismo está presente no Questionário de Amostra, aplicado em aproximadamente 11% dos domicílios do país, o que representa cerca de 8,5 milhões de residências. O questionário amostral leva mais tempo para ser preenchido, já que inclui, além de todos os quesitos presentes no Questionário Básico, outros mais específicos, tais como: religião ou culto, fecundidade, deficiências, migração e deslocamento.

Estas questões estão sendo aplicadas em uma parcela significativa dos domicílios brasileiros, que são definidos de modo a representar os mais diversos estratos da sociedade, compondo, assim uma amostra considerada estatisticamente válida. Isso significa que, uma vez finalizada a coleta dos dados, estes passarão por um tratamento matemático que permitirá ampliar o resultado, obtendo um panorama que diga respeito ao país como um todo. Desse modo, será possível conhecer, de forma inédita, o retrato do autismo no Brasil.

“A dor e a delícia de ter esse diagnóstico", diz João Paulo de Castro

“Eu me lembro de ver reportagens mostrando pais, mães, e até os próprios autistas carregando cartazes com a mensagem: ‘Não podemos esperar! Autismo no Censo!’”, lembra João Paulo de Castro, sobre o movimento que reivindicou a incorporação do tema na atual edição do recenseamento. Bacharel em Direito, servidor temporário do IBGE e escritor nas horas vagas, João Paulo vive a sua vida como indivíduo no espectro autista. E é a partir dessa perspectiva que ele avalia o progresso que esta questão sobre o autismo representa: “É um passo importante, por ser uma pesquisa que se propõe a ir a todas as camadas sociais, de acordo com cor, com credo, com faixa de renda, e a outras minorias que também possuem pessoas com o diagnóstico.”


“Inclusão em todos os sentidos”, é o que João Paulo de Castro espera para a comunidade autista como resultado do Censo.

João Paulo não estava em casa no momento que o Censo passou, mas seus pais receberam o recenseador e responderam às perguntas do Questionário Básico. Mesmo que seu domicílio não tenha sido sorteado entre aqueles que receberam o Questionário de Amostra, e, consequentemente, a pergunta sobre o autismo, ele entende que a metodologia adotada pelo IBGE possibilitará chegar a um resultado acertado sobre a população autista brasileira. “Obviamente que houve a redução de questões do Censo, mas eu acho que esse é um questionamento importante a se fazer. Essa pergunta, mesmo que bem sucinta, vai permitir a visualização de um panorama que possibilite o melhor desenvolvimento e implementação de políticas públicas referentes a questões como educação, mercado de trabalho, moradia e saúde”, argumenta.

Autor dos livros “Eu, adulto e autista: Linguagem, atos de fala como formas de vida” (2019) e “Uma vida atípica: memórias e outros escritos de um adulto no espectro autista” (2022), João Paulo comenta que não foi fácil o percurso entre o diagnóstico e a aceitação. “Eu era um pouco indiferente, e às vezes não aceitava. Eu entendia que era alguma pessoa fadada a ser infeliz, isolada, que não tinha muitos amigos, embora houvesse pressão para me socializar, o que me gerava sofrimento demasiado”, comenta João Paulo, que teve o diagnóstico de autismo leve ainda na infância, aos 10 anos de idade, mas só veio a ser informado nove anos depois.

Foram mais dez anos até a aceitação: “Eu soube em 2005, e em 2015 eu decidi fazer esse processo de reavaliação. Eu tinha que entender melhor porque eu sou assim e saber jogar o jogo. Precisei ressignificar o que era ser autista e aceitar, não com resignação, mas como uma característica humana, uma diferença que me era intrínseca.” Em busca de melhorar sua qualidade de vida e ter mais amor-próprio, João Paulo tomou a decisão de compartilhar seus pensamentos e experiências com outras pessoas: “Eu comecei a me abrir, falar em um evento ou outro, frequentar grupos nas redes sociais. E nesse processo eu fui me sentindo menos só, quando descobri que mais gente vivia experiências semelhantes. Como dizem, a dor e a delícia de se de ter esse diagnóstico.”

A própria decisão de assinar o contrato de trabalho no IBGE também é fruto desse processo de aceitação e da força que tem recebido de sua família e da comunidade autista. Hoje João Paulo está em sua segunda passagem pela Superintendência do IBGE no Ceará (SES/CE): a primeira foi em 2016 como Agente de Pesquisa e Mapeamento (APM) e agora está desde 2022 como Analista Censitário. Para além dos impactos na vida pessoal, ele também tem observado reações positivas vindas de outras pessoas, sejam elas autistas ou não: “Eu acho que compartilhar essas vivências permite que muitas pessoas se identifiquem, sintam menos dúvidas sobre si e aceitem melhor o diagnóstico. Às vezes também aparecem mães e pais que têm suas dúvidas e angústias quanto ao futuro das suas crianças autistas. E eles gostam dessa troca de informações que eu proponho, isso lhes dá ânimo e coragem.”

“Inclusão em todos os sentidos”, é o que João Paulo espera como consequência do Censo 2022. “Até ano passado se falava em um sistema especial de educação, e vejo que não tem cabimento separar os autistas”, menciona, referindo-se à discussão em torno do Projeto de Lei n° 3803 de 2019, que propunha um modelo de educação especializada para a população autista. “Como nós vamos ser preparados para ingressar na universidade, no mercado de trabalho? Faz mais sentido estar no sistema regular de ensino, com o professor de apoio. A inclusão é benéfica não só para o estudante autista, como também para os demais, que vão aceitando melhor as diferenças”, conclui.

“Provavelmente nós teremos um mundo mais ou menos autista”, diz José Lucivan Miranda 

“O autismo é um tema do dia a dia, que está na mesa das famílias. Hoje é raro uma família que dentre os seus membros não tenha alguém diagnosticado com autismo”, defende o médico neurologista infantil José Lucivan Miranda, que recebeu a equipe do IBGE no condomínio onde reside em Fortaleza-CE no dia 15 de fevereiro e respondeu às perguntas do recenseamento. Ele fez questão de participar do Censo 2022, tanto por identificar a importância da pesquisa para o país, como também por compreender o avanço que é a inserção de uma questão sobre o autismo.


"A gente precisa ter dados concretos", afirma Lucivan Miranda, neurologista infantil, sobre a importância do autismo no Censo.

Mestre em Neuropediatria e professor do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), Lucivan tem observado, a partir de sua experiência clínica e de seu conhecimento acadêmico, um aumento significativo do número de pacientes autistas. Isto foi o que o motivou a direcionar sua carreira para o estudo do tema e atendimento a essa população. Para além de mera constatação individual, o neurologista aponta que há realmente uma tendência de crescimento, que inclusive o Censo poderá ajudar a identificar: “Mundialmente, o que as estatísticas mostram é que tem aumentado a incidência e a prevalência de autismo. Por aqui, nós temos dados pontuais, feitos em algumas regiões ou cidades. Mas a nível de Brasil nós não temos esse número.”

O médico atribui o aumento a diversos fatores, entre eles a popularização da discussão sobre o tema e, consequentemente, da busca pelo diagnóstico, além da ampliação dos critérios para a identificação do autismo. Ele explica que o protocolo científico mundialmente adotado para identificação do TEA é a 5ª edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, conhecido como DSM-5, publicado em 2013 pela Associação Americana de Psiquiatria (APA). “O autismo se baseia essencialmente nas alterações em duas áreas: na linguagem, ou seja, na comunicação, e alterações comportamentais. O diagnóstico é puramente clínico, não sendo necessários quaisquer exames”, destaca o neurologista.

Sendo também presidente do Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce (NUTEP) da UFC, Lucivan defende a importância de identificar o autismo o mais cedo possível para que seja possível um tratamento adequado do paciente. “Se você faz um diagnóstico nos primeiros três anos de idade, e se essa criança é bem atendida por uma equipe multidisciplinar, esse autismo pode mudar o seu curso. Não se fala em cura, mas sim em melhora do paciente”, argumenta o médico, que esclarece que o autismo geralmente vem acompanhado de outras condições, como epilepsia, distúrbios do sono, Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH), etc, as quais podem ser amenizadas diante de um tratamento correto.

Diagnóstico e tratamento são duas das maiores dificuldades enfrentadas pela população autista no Brasil, destaca o neurologista: “Ainda é difícil para algumas famílias chegarem a ter esse diagnóstico, que às vezes vem tardiamente. Por outro lado, a grande maioria das crianças de classes sociais mais baixas que são diagnosticadas estão sem tratamento, porque não existem vagas.” Nesse sentido, Lucivan enxerga o Censo como uma ação fundamental para que essa população seja melhor conhecida e, assim, receba mais atenção do poder público: “O autismo está em todas as etnias, todos os estratos e classes sociais. Ele atinge de uma maneira geral a todos. A gente precisa ter dados concretos, porque tudo se baseia em dados. Sabendo-se o número de autistas, isso alerta as autoridades, para que mais serviços sejam dedicados a esses pacientes. Provavelmente [com o Censo] nós teremos um mundo mais ou menos autista."

O autismo no Censo 2022

Para a elaboração da questão sobre o autismo, o Censo Demográfico 2022 se baseou na definição adotada pela Organização Mundial de Saúde, que entende o Transtorno do Espectro Autista (TEA) como “uma série de condições caracterizadas por algum grau de comprometimento no comportamento social, na comunicação e na linguagem, e por uma gama estreita de interesses e atividades que são únicas para o indivíduo e realizadas de forma repetitiva”. O TEA pode ser identificado ainda na infância e geralmente persiste na idade adulta.

Uma vez que a metodologia do Censo prevê a realização de um questionário por domicílio, as perguntas são direcionadas a apenas um morador, que responde por si e pelas outras pessoas com quem reside. Isso ocorre também com a pergunta sobre autismo presente no Questionário de Amostra: o informante deverá considerar se cada um dos moradores, independentemente da idade destes, já recebeu o diagnóstico de autismo por parte de algum profissional de saúde, como médico, psicólogo, fonoaudiólogo, entre outros.

Apesar de ser uma pergunta aparentemente sucinta, ela viabiliza o cruzamento dos dados sobre o autismo com outras informações do questionário. Desse modo, com os resultados do Censo Demográfico 2022 será possível traçar o perfil das pessoas autistas de acordo com seu sexo, idade, cor ou raça, local de residência, faixa de renda, estrutura da residência, acesso a serviços básicos, etc, permitindo conhecer melhor em que condições essa parcela da população brasileira está vivendo.

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