Agente censitário descreve como foi recensear indígenas de recente contato, no Amazonas

Editoria: Censo 2022 | Da Redação

06/02/2023 09h12 | Atualizado em 06/02/2023 09h12

O Censo 2022 agora está na fase final, mas algumas memórias do que foi vivido ficam para sempre. O agente censitário, Leonardo Andrade de Souza, viveu algo “único e impactante”, como ele mesmo descreveu, durante o Censo no Amazonas. É que Leonardo e a equipe conseguiram recensear pela primeira vez o povo Zuruahã (autodenominado Suruwaha), indígenas de recente contato, que vivem distantes das principais vias de navegação do médio Rio Purus, no município de Tapauá.

O coordenador de área responsável pelo local, André Moura, disse que, segundo as informações que obteve, o IBGE já havia chegado à aldeia antes, mas os indígenas se recusaram a serem recenseados: “eles fugiam, não deixavam entrar, sumiam na mata; mas, dessa vez, foram recenseados e, inclusive, esse é um dos maiores troféus que eu levo desse Censo, ter contado os Suruwaha, de Tapauá, e também os Pirahã de recente contato, do município de Humaitá”. De acordo com dados do Censo 2010, foram recenseados somente 15 pessoas indígenas da etnia Zuruahã (Suruwaha) no País, sendo seis residentes na Região Norte.

A saga para chegar até os indígenas Suruwaha

Antes de Leonardo ser chamado para a missão do Censo entre os indígenas Suruwaha, alguns recenseadores haviam dito que tinham receio de realizar a coleta do Censo no local, mas Leonardo já tinha se oferecido para cumprir essa tarefa. “Eu queria ir e aceitei o desafio e, assim, a nossa maratona começou”, conta ele. Guias da FUNAI e SESAI acompanharam Leonardo até a Terra Indígena Suruwaha, conforme procedimentos exigidos por estes órgãos. Munidos com as orientações dessas instituições e também da Base de apoio à coleta de PCTs, do IBGE, a equipe partiu para a viagem.

Logo para começar, o trajeto até a base da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) mais próxima da aldeia levou cerca de cinco dias de barco. “Na base, eu e o representante da FUNAI, Mauro Knackfus, que me acompanhou o tempo todo, ficamos mais de duas semanas, fazendo quarentena. Os indígenas têm medo de contrair doenças de pessoas de fora da aldeia, pois já sofreram muito com epidemias”, relata. Vale destacar que o IBGE segue o protocolo de saúde em Terras Indígenas e Territórios Quilombolas, que além da quarentena, também prevê a observação do cartão de vacinas atualizado e a obediência de protocolos de segurança específicos relacionados à prevenção à COVID-19 junto aos povos indígenas.

Depois, a viagem para chegar até a aldeia foi definida por Leonardo como extremamente difícil: “demoramos um dia inteiro para chegar na boca do Igarapé Preto, que dá acesso à aldeia; acampamos no meio do mato, com o receio de sermos picados por mosquitos, ou de virarmos alvo de onça ou cobra, já que é uma área de preservação ambiental e os animais circulam livremente lá”. No outro dia, eles continuaram a maratona para chegar à aldeia: “eu e o Mauro íamos na frente quebrando os pedaços de madeira para a nossa canoa conseguir passar porque o rio estava seco e, em muitos trechos, tínhamos que descer da canoa para empurrar”, relembra o agente censitário.

Nesse dia, por volta das 16h, dois homens indígenas Suruwaha foram ao encontro de Leonardo e equipe. O agente censitário ficou surpreso ao ver de perto os indígenas de recente contato, dos quais tinha apenas ouvido falar: “foi muito impactante para mim. Eles falaram algo para o Mauro, que também fala a língua deles (um tradutor sempre precisa estar presente para o recenseamento de indígenas não-falantes de português), e disseram que estavam ali esperando a gente mesmo”, relatou.

Depois, todos seguiram viagem, chegando à aldeia por volta de 17h30. No local, uma cena de filme não saiu da cabeça de Leonardo: “tinham indígenas por todos os lados, em cima de montes, alguns com a cara pintada, alguns com arco e flecha… Aquilo foi extremamente marcante para mim; eu até falei: - eu não sei vocês, mas eu me arrepiei quando cheguei ali, e vi aquelas pessoas vivendo isoladas, com todos os seus costumes e tradições preservados”, relatou. Ele disse que havia lido sobre as normas de conduta e orientações específicas sobre sua área de trabalho, mas quando viu a realidade do Povo Suruwaha de perto, ficou impressionado.

Assim, Leonardo conta que ele e a equipe foram ao encontro dos indígenas, “e eles foram extremamente curiosos, pediram para tirarmos a blusa, também pegavam na gente, perguntaram sobre o que era a pesquisa, e depois passamos três ou quatro dias na aldeia, onde fizemos o Censo”. O agente censitário também relembra que ele andou por vários trechos porque “os Suruwaha migram bastante, trocam de malocas, têm várias espalhadas; vez ou outra abandonam uma maloca, vão para outra área, derrubam o roçado e começam tudo de novo”. De acordo com Leonardo, eles possuem machado, terçado e outras ferramentas cedidas pela FUNAI para o trabalho agrícola.

O agente censitário relata que a os indígenas Suruwaha plantam mandioca, cana-de-açúcar, milho, abacaxi, pupunha, banana da terra, e que todos são muito trabalhadores. “Lembro que eu fiquei impressionado com senhoras de 60, 70 anos que faziam caminhadas de muitos quilômetros, de um roçado para outro, com um paneiro (cesta de tramas), e traziam bananas, abacaxis, indo e vindo, com um vigor incrível, porque poucas pessoas conseguiriam fazer aquela jornada, ainda mais com o cesto cheio de coisas”.

O agente percebeu, durante os dias que passou na Terra Indígena, que, se por um lado, eles têm agricultura forte, por outro, têm dificuldades para caçar durante o período de seca dos rios: “os animais ficam escassos por lá”.

Dias na Terra Indígena

No primeiro dia, Leonardo disse que todos os indígenas estavam curiosos com as visitas na aldeia. Cederam um papiri, uma espécie de abrigo feito de folhas, “para que ficássemos mais à vontade, e todos os indígenas foram para a maloca (grande habitação coletiva). À noite, eles foram visitar a gente”. Em relação à comida, a equipe levou sua alimentação, principalmentes enlatados, para o período na Terra Indígena, “e dificilmente os indígenas comiam com a gente, apesar de serem curiosos, e quererem provar nossa carne em conserva”, relembra o agente censitário.

E será que é possível fazer amizades com falantes de outra língua? Leonardo disse que sim: “eles têm bastante curiosidade para conversar com pessoas novas por lá. Alguns pegavam pelo braço e levavam a gente para um canto, sentávamos perto de uma árvore, e eles começavam a ensinar algumas palavras da língua deles (da família linguística Arawá), porque como o pessoal da FUNAI vai lá com alguma frequência, eles sabem um pouquinho de português já; pegavam objetos e falavam o nome na língua deles; deu para aprender algumas frases”, conta. E no último dia, comprovando o vínculo feito, na hora da despedida, “eles perguntavam quando eu iria voltar”, relembra o agente.

Sobre o seu trabalho de recenseamento do Povo Indígena Suruwaha, Leonardo resume: “acho que nunca vou esquecer dessa experiência! Eu teria até pagado para ter tido essa oportunidade de conhecer essa aldeia, enquanto vários recenseadores não quiseram ir por receio, pela dificuldade de chegar ao local; mas a verdade é que foi gratificante para mim e eu fiquei extremamente feliz de poder ter realizado o primeiro Censo Demográfico naquela aldeia. Foi uma experiência única e impactante”.

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